Introdução
Fomos convidados para participar como palestrante de um encontro promovido pela Faculdade de Psicologia da Universidade Estácio de Sá, no dia 25 de maio de 2009, cujo tema central era “Psicólogo no Esporte e Responsabilidade Social no Exercício da Cidadania”. O convite partiu de uma pessoa que admiramos muito, não só pela sua capacitação técnica, mas principalmente pela sua dedicação à causa da Psicologia do Esporte no Brasil: Dra. Sônia Ricette, professora e coordenadora da Pós-Graduação em Psicologia Aplicada ao Esporte da Universidade Estácio de Sá. Mais uma vez, nossos agradecimentos à Sonia Ricette pelo convite.
O primeiro passo foi definir o tema da palestra, logicamente ligado aos três temas centrais do evento, ou seja, Responsabilidade, Social e Cidadania. Automaticamente, a primeira idéia que nos vem quando lemos essas três palavras é: valores éticos e morais de um povo.
Como o módulo onde a palestra seria apresentada estava correlacionado com o esporte, não foi muito difícil encontrar um tema relevante, visto que, para nós, o esporte é uma excelente (se não a melhor) ferramenta para cultivar tanto valores morais como éticos, junto à juventude de um país.
Com uma platéia composta de estudantes tanto de Psicologia como de Educação Física, optamos pelo tema: “Interação Psicólogo-Técnico na Formação da Pessoa pela Iniciação Desportiva”.
Partindo da premissa que o esporte é uma ferramenta de formação da pessoa, fica implícita nesse contexto a faceta pedagógica tanto da prática esportiva como do treinamento esportivo, desde a iniciação até o alto rendimento. Faceta essa, que é entendida pela maioria dos técnicos e treinadores apenas como formação e desenvolvimento biológico do ser humano, que visto pela ótica do rendimento atlético, é tratado apenas como uma máquina a ser ajustada para o funcionamento ótimo no momento da competição.
Esse equívoco imperou durante muito tempo nos meios desportivos, e ainda persiste por diversos motivos que vão desde a impossibilidade de contratação de equipes multidisciplinares, até a presunção de muitos técnicos que se vêm totalmente competentes para gerenciar a preparação do atleta.
No caso do Tiro Esportivo o problema ainda é maior, visto que, grande parte dos atletas inicia e pratica sem nenhuma orientação. Propomos que esqueçamos essa situação para que o artigo faça algum sentido, independente da sua utilidade técnica.
Segundo o Professor Hiram Casal (Havana/CUB),
...com freqüência para alguns desportistas e, lamentavelmente, para alguns treinadores não está muito clara a fronteira entre as ciências biológicas e a essência do trabalho de um treinador desportivo. Esta é uma confusão por excesso: se representam a Fisiologia e a Bioquímica como se cobrissem todo o processo de treinamento. (CASAL, 2000)
Essa visão unilateral exclui o apoio de diversas Ciências, como a Pedagogia, a Sociologia e a Psicologia, como pilares do Treinamento Esportivo. Nosso intuito é passar para vocês não só a importância da inclusão, mas principalmente um pouco da nossa experiência na integração do Psicólogo junto ao trabalho de formação e treinamento do atleta do Tiro Esportivo.
Essa experiência é fruto do trabalho que executamos no Centro de Treinamento de Tiro Esportivo que coordenamos Clube Militar (sede esportiva, Lagoa - Rio de Janeiro/RJ), onde disponibilizamos o Treinamento Psicológico tanto para os atletas em formação, como para atletas que já se encontram no alto rendimento.
Esse trabalho tem demonstrado que não existe nada mais importante do que a correta iniciação para o sucesso do atleta, e que, se quisermos realmente atingir altos resultados, temos que trazer desde a iniciação todo o apoio científico que dispusermos.
Visão Holística da Pessoa
A primeira questão a ser levantada consiste exatamente no tema principal da palestra, que nos coloca sob a ótica da responsabilidade social e da formação da pessoa pela iniciação esportiva. O trabalho é holístico e transcende à estimulação biológica do organismo. Na realidade, o organismo de que tratamos é um ser BIO-PSICO-SOCIAL, onde as três esferas envolvidas se encontram imbricadas e impossíveis de serem dissociadas, durante todo o processo de treinamento.
A segunda questão diz respeito à formação da pessoa, ou seja, destaca o aspecto pedagógico da prática esportiva e do treinamento esportivo com ênfase no desenvolvimento das habilidades psicológicas e da formação da personalidade e do caráter do jovem praticante.
Além dos fatores biológicos, unidos, por sua própria natureza, à particularidade físico-motriz do processo de preparação do desportista, os aspectos intelectuais, emocionais e sociais têm ganho relevância, na mesma medida que as conquistas desportivas são cada vez mais superiores.
Estes aspectos entram na esfera da ciência psicológica, enquanto formam parte do seu objeto.
Desde o ponto de vista do processo de formação do desportista, as variáveis intelectuais, emocionais e sociais devem ser manipuladas, para favorecer o rendimento desportivo. Desde o ponto-de-vista da Teoria do Treinamento, os princípios e métodos que essa teoria expressa
devem ser fundamentadas nessas variáveis, da mesma forma em que também se deve fundamentar nas variáveis biológicas. (CASAL, 2000)
Casal (2000) enfatiza os aspectos de instrução e de educação da prática esportiva:
...a instrução se refere ao ensino e aprendizagem da técnica e tática desportivas, e a realização de todas as tarefas concebidas para alcançar o objetivo do processo, enquanto a educação se refere ao desenvolvimento das qualidades da personalidade que condicionam o rendimento atlético e as vezes, transcende-o, e ainda se convertem em recursos da personalidade do atleta, para enfrentar diversas situações da vida. (CASAL, 2000)
Os Agentes Envolvidos no Treinamento Esportivo
Dessa forma, encontramos no processo desportivo um complexo quadro de agentes que interagem com o jovem atleta nas três esferas: BIO (técnico, preparador físico, fisioterapeuta, nutricionista, médico, etc.) – PSICO (psicólogo, pedagogo e assistente social) – SOCIAL (pais e parentes, dirigentes, clube, escola, entidades esportivas, patrocinadores, etc.).
No nosso entender, a função primeira do psicólogo é promover a comunicação clara e eficaz entre todos os agentes, de forma a garantir que o caráter educativo prevaleça sempre sobre a busca do desempenho atlético.
É preciso esclarecer que, em qualquer modalidade esportiva, deve-se priorizar o desenvolvimento integral da criança (motor, cognitivo, motivacional, emocional e social) e não objetivar unilateralmente o desenvolvimento do rendimento esportivo e a otimização da performance (pressão de expectativas). (CASTRO & CONDE, 2008)
Dentre os agentes envolvidos no processo, destacamos aqueles que se apresentam como a primeira influência na vida do jovem atleta: os pais.
Adaptando as considerações de Gomes (2001), encontramos cinco tipos característicos de pais no âmbito do desporto:
• Pais Excessivamente Críticos – assistem a todos os jogos e treinos e questionam frequentemente o técnico quanto ao desempenho dos seus filhos;
• Pais Descontrolados – apresentam como sinal típico a crítica (verbal ou não) durante as competições, dirigida a vários alvos (atletas, técnico, árbitros, etc.);
• Pais Treinadores de Arquibancada – assumem frequentemente o papel do técnico, normalmente contradizendo as instruções e causando confusão e mal-estar nos atletas;
• Pais Super Protetores – têm como principal indicador os comentários de angústia e preocupação acerca do filho e dos riscos da modalidade, bem como a ameaça freqüente de abandono e retirada dos filhos, devido a esse perigo;
• Pais Desinteressados – pautam pela total ausência nas atividades relacionadas com o desporto. (Gomes, 2001)
Outro fator importante que atravessa constantemente todos os agentes (nesse caso não só o jovem atleta) é o fato de vivermos num mundo de capitalismo extremado que impõe valores que enfatizam o “ter” em detrimento do “ser” como indicador de sucesso, e estimula o consumo como fonte de busca do prazer imediato, criando uma sociedade avessa ao sofrimento, etapa intermediária e indispensável ao processo de auto-desenvolvimento.
Utilizando cada vez mais as imagens para propagar seus valores pelas diversas formas de mídias eletrônicas, a sociedade do Vapt-Vupt, imagética e midiática, se constitui e exige um imediatismo cada vez mais rápido, onde todas as metas são alcançadas na velocidade do click, eliminando a paciência, perseverança, persistência, e principalmente, a capacidade de suportar as tensões intermediárias da vida.
Voltando ao tema da formação da pessoa, é nesse aspecto que talvez o esporte possa melhor contribuir, resgatando o valor do processo como corpo principal e a essência do caminho entre o estado atual e o objetivo a alcançar.
Porém, nem mesmo o esporte se exime dessa maléfica influência do imediatismo. Equipes multidisciplinares ditas competentes têm produzido fraudes esportivas com base em doping e diversas práticas irregulares que visam à vitória a qualquer custo, mesmo com sérios prejuízos à saúde dos atletas envolvidos.
A Equipe Multidisciplinar Centrada na Pessoa e os Critérios de Sucesso do Treinamento Esportivo
Pela complexidade da tarefa, fica fácil antever que é impossível para uma única pessoa, por mais capacitada que seja, dar conta do treinamento esportivo com base no desenvolvimento do ser humano BIO-PSICO-SOCIAL. Faz-se necessário uma equipe multidisciplinar. Na realidade, quando escolhemos como tema a interação do psicólogo com o técnico, tínhamos como intuito abordar a interação do psicólogo com a moderna equipe técnica, onde múltiplos conhecimentos proporcionam e integram a base científica para a tarefa em questão.
Para que essa integração aconteça, entendemos ser fundamental a presença de cinco fatores:
a) Horizontalidade de funções
b) Humildade
c) Visão compartilhada de objetivos
d) Ética profissional
e) Atuação centrada no bem estar do atleta
Consideramos as cinco de igual importância, porém a última determina a direção principal que deve orientar o trabalho da equipe. Falar de bem-estar do atleta é falar nos critérios de sucesso do treinamento esportivo. Como vimos anteriormente, o rendimento atlético é o objetivo do treinamento, porém, o desenvolvimento das qualidades de personalidade que condicionam o rendimento, centrado no bem-estar do atleta, deve sempre ser a prioridade do trabalho.
Talvez, essa seja a principal contribuição do treinamento psicológico: sustentar o foco na evolução do processo e não no resultado, mantendo uma perspectiva centrada no atleta. O referencial de sucesso deve ser intrínseco e pautado na evolução individual. A excelência, e não a perfeição.
Mesmo quando analisamos o resultado obtido pelo atleta em uma competição, ou seja, o referenciamos ao grupo, a análise deve ser individual, pautada no seu desempenho e na evolução dos aspectos singulares. Devemos, portanto, significar a competição como um referencial de evolução qualitativa do processo individual, valorizando o bom desempenho no lugar do bom resultado.
Para que isso fique bem claro, vamos dar um exemplo pessoal: numa competição preparativa para os Jogos Olímpicos de Moscou no clube HSG de Munique (Alemanha - 1980), com temperaturas abaixo de zero, vento e neblina, vencemos a aprova de Pistola Livre com 531 pontos. Um resultado muito abaixo da média que vínhamos fazendo, porém, representativo de uma excelente tática, que nos permitiu um desempenho ótimo para as circunstâncias da competição. Nesse, como em todos os casos, o resultado puro e simples, pouco significa. Três semanas depois, obtivemos o 9º lugar nos Jogos Olímpicos com 558 pontos em Pistola Livre, em condições normais de temperatura e pressão (nem tanto).
Objetivos da Formação Desportiva
Retomando o patamar do esporte como ferramenta de formação da pessoa, é importante que todos na equipe multidisciplinar comunguem do mesmo objetivo da formação desportiva, isto é, que a pessoa se sinta bem, se divirta e se socialize enquanto praticante do desporto, promovendo atletas que:
a) Estejam motivados para obter excelência
b) Corram riscos para aprender
c) Assumam mais facilmente as responsabilidades pelos seus atos
d) Assimilem feedback de apoio, reforço e críticas construtivas
e) Percebam o prazer no processo mais do que em vencer
f) Aceitem-se a si próprio e aos outros, como pessoas com potencialidades e aspectos a melhorar
Para encerrar a palestra, apresentamos um fato que sem dúvida irá mexer com o mundo dos esportes e, por conseguinte, com todos os agentes envolvidos no treinamento esportivo: no próximo ano (2010) ocorrerão em Singapura (SIN), no período de 14 a 26 de agosto, os Primeiros Jogos Olímpicos Juvenis, reunindo cerca de 3.800 jovens na faixa etária de 14 a 18 anos.
Esse fato irá demandar uma especialização cada vez mais precoce, criando um novo patamar para o início do que hoje chamamos de alto-rendimento. Exigirá uma especial atenção da equipe multidisciplinar, com destaque para o trabalho da psicologia no esporte e da pedagogia esportiva na correta intervenção junto aos agentes sociais, destacando os pais e familiares, dirigentes e patrocinadores.
Fato semelhante já ocorre hoje nas categorias de base do futebol brasileiro, alvo cada vez mais freqüente de olheiros estrangeiros que seduzem as famílias (quase sempre de baixa renda) dos cada vez mais precoces talentos esportivos, levando-os para treinar no exterior, sob a expectativa de uma vida melhor para toda a família.
Nada mais oportuno do que apresentarmos os Direitos da Criança no Desporto, citados por Gomes (2001):
1 - Direito a praticar desporto, independente das suas habilidades ou dificuldades;
2 - Direito a divertir-se e jogar como uma criança;
3 - Direito a se beneficiar de um ambiente saudável;
4 - Direito a ser tratada com dignidade;
5 - Direito a ser treinada, orientada e dirigida por pessoas competentes;
6 - Direito a ser submetida aos treinos adequados aos ritmos individuais;
7 - Direito ser confrontada com crianças da sua idade, que tenham as mesmas possibilidades de obter sucesso;
8 - Direito a participar em competições apropriadas;
9 - Direito a praticar o desporto com toda a segurança;
10 - Direito a ter tempo para descansar;
11 - Direito de não ser um campeão! (GOMES, 2001)
Considerações Finais
O presente artigo nos leva a concluir que, o esporte mais do que nunca é importante na formação do jovem; que a prática esportiva deve fazer parte das diretrizes de todo país que busca cultivar valores éticos e morais; que a psicologia é uma das ciências que possibilita atingir os objetivos do desporto em todos os níveis; que esses objetivos devem preservar a singularidade do atleta e contribuir com o seu crescimento como ser humano BIO-PSICO-SOCIAL; que isso só é possível através do trabalho ético e de longo prazo de uma equipe multidisciplinar integrada e que priorize o bom desempenho e a busca da excelência esportiva; e que cabe ao psicólogo do esporte promover a comunicação clara e objetiva entre todos os agentes envolvidos na prática desportiva, mantendo todos orientados para o bem-estar do praticante.
No nosso entender, as vitórias ocorrem, as medalhas são ganhas, mas o grande legado do esporte reside no cultivo de valores éticos e morais no seio da juventude de um país.
Referências Bibliográficas:
1. GOMES, Rui. Artigo. Revista Treino Desportivo, CEFD/PT, 2001, p. 31-37, março 2001.
2. CASAL, Hiram. Artigo.Rev. Bras. Ciên. e Mov. Brasília v.8 n. 4 p. 37 - 44 setembro 2000.
3. CASTRO, Monique & CONDE, Erick. Artigo.Esporte Infantil. 2008.
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