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Mushin (Não pensar em nada - Mente Vazia)

Mu (vazia) shin (mente)

"Não se pensa em nada de definido, quando nada se projeta, aspira, deseja ou espera, e que não se aponta em nenhuma direção determinada e, não obstante, pela plenitude da sua energia, se sabe que é capaz do possível e do impssível...esse estado, fundamentelmente livre de intenção e do eu, é o que o Mestre chama de espiritual."

Herrigel - A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen.

Sabedoria Chinesa

Quando um arqueiro atira sem alvo nem mira, está na originalidade de sua realização de atirador.

Quando atira para ganhar, instala-se em sua realidade uma cisão entre atirar e ganhar. E já fica nervoso.

Quando atira por um prêmio, fica cego.
Pela cisão vê ao mesmo tempo dois alvos.
Sua realidade é a mesma, mas as divisões o cindem.
Ele se pre-ocupa mais em ganhar do que atirar.
Vê mais o prêmio do que o alvo.

A necessidade de vencer lhe esgota a força de identidade!


Chuang-tzu - "Mestre Zhuang"
Filósofo taoísta chinês (369 a.c. / 286 a.c.)

13 julho 2008

Treinar em Seco

Antes de começar o artigo, tenho que pedir desculpas aos que acompanham essa coluna, pelo tempo ausente. Mas o motivo é justo. Comecei a faculdade de Psicologia no período da manhã, justamente no horário em que eu me dedicava à elaboração dos artigos.

Vamos então ao que interessa:

Em 1977, eu me formei na Escola Naval em Engenharia Mecânica e Bacharel em Ciências do Mar. Minha viagem de Guarda Marinha (GM) foi em 1978, saindo do Rio de Janeiro no início do ano e retornando em agosto, após visitar vários países da Europa e alguns da África. Essa viagem compõe o último ano de formação do Oficial de Marinha.

1978 era também o ano do Mundial de Tiro Esportivo, que seria realizado em Seul, na Coréia do Sul.

Naquela época, a então CBTA (Confederação Brasileira de Tiro ao Alvo) realizava TTSS (Torneios Seletivos) cuja soma dos resultados compunham o ranking para definir a equipe brasileira para as competições internacionais. Os torneios seletivos eram feitos simultaneamente nas três regiões esportivas: Norte-Nordeste, Centro-Brasileira e Sul-Brasileira, sob a fiscalização de um dirigente designado pela CBTA.

O TS1, realizado em janeiro, serviu como seletiva para o VII Torneio Internacional de Tiro Benito Juarez. Nesse Benito, na prova de Pistola Livre, fiquei em 3º lugar, com 548 pontos, e a equipe em 2º lugar (Eu, Paulo Lamego, Dirceu Eloy e Bertino Souza).

Começamos bem o ano!

Voltei ao Brasil e embarquei para a viagem de GM.

Para minha felicidade, o NE Custódio de Melo (Navio Escola) atracou em Recife justamente no final de semana do TS2. Recife era o último porto nacional da viagem e local sede dos TTSS da região Norte-Nordeste. A prova foi no Caxangá Golf e Country Club. Fiz 552 pontos, ultrapassando o índice de 550 pontos estabelecido pela CBTA para o Mundial e garanti, em parte, a minha participação.

Em parte, porque durante os cinco meses seguintes, enquanto eu cumpriria a árdua tarefa de conhecer a Europa de navio, a CBTA realizou mais dois TTSS, dos quais logicamente não pude comparecer. Minha soma no ranking ficou então com dois resultados a menos, porém com o índice alcançado.

Aprendi cedo com o Professor Hermógenes (Filosofia no CMRJ) que quando queremos muito uma coisa, basta clarificar o objetivo, não ter nenhuma dúvida de que o alcançaremos e, como nem tudo é inspiração, trabalhar duro, dedicando 110% das nossas energias para conquistá-lo.

Para tal, basta utilizar a seguinte técnica: antes de tomar qualquer decisão, pergunte-se se o que irá fazer lhe afasta ou lhe aproxima do seu objetivo? Aproxima, então faça. Afasta, então não faça. Simples, muito simples, mas infalível.

Eu queria muito ir ao Mundial, e tinha como meta ficar entre os 30 primeiros colocados.

Ser convocado não dependia mais de mim, mas ficar entre os 30 primeiros, só dependia de mim, ou seja, dependia de me manter treinado durante os próximos cinco meses, dos quais 70% do tempo eu estaria em alto mar, balançando e sem poder dar um tiro real. Como nos portos do exterior não havia como atirar, o treino para o Mundial seria 100% em seco. Ou seja, cinco meses treinando em seco. Em seco e balançando!

Para reduzir o efeito do balanço, montei o meu centro de treinamento físico e técnico num compartimento no centro do navio, o mais próximo da quilha (se você não entendeu nada, não tem problema, basta saber que é o lugar onde o jogo do navio é menor).

Como acessório de treinamento, só um espelho mais ou menos da minha altura, para me ver correndo e atirando, e quatro paredes brancas. Não sei o que era mais difícil, se treinar em seco por duas horas ou correr quarenta minutos no mesmo lugar. Isso, todo dia, durante 150 dias. Ou melhor, 120 dias, abatendo os 30 dias de porto.

O treino consistia nos seguintes exercícios: posição interior, acionamento de olhos fechados, estática na cruz e muito tiro em seco na parede branca, incluindo também provas inteiras em seco, cantando tiro a tiro e registrando o valor para computar o resultado final dos 60 tiros de prova.

Quando corria, imaginava no espelho a paisagem que eu queria, criando-a na mente e refletindo-a no espelho. Dessa forma o exercício não se tornava monótono, pois eu nunca corria no mesmo lugar. A coisa só complicava quando o mar ficava bravo e o chão subia e descia, junto com o estômago.

As provas em seco serviam para treinar a atitude de competição, cantando tiro a tiro, e representando na minha mente toda a realidade competitiva: passando por bons e maus momentos, lidando com tiros bons e ruins, mantendo e perdendo a concentração, desviando e retomando a atenção na técnica, ou seja, tudo o que de fato ocorre numa prova de Pistola Livre. Por diversas vezes, fiz em seco a prova do Mundial, dos Benitos, das Copas Latinas, dos Jogos Pan-Americanos e Olímpicos.

O retiro no cubículo de treino serviu para criar o hábito da introspecção, me isolando totalmente do mundo exterior.

O balanço serviu para gerar uma capacidade de manter a estabilidade mesmo com o corpo “jogando”, e o mais interessante, criar um ritmo de tiro regido pelo ciclo das ondas. Interrompendo o processo, aguardando o momento adequado para iniciá-lo, mais ou menos como acontece quando há vento e temos que aguardar a bandeirola acalmar. Como treino físico, acho que foi muito bom também.

Os aspectos mais importantes e positivos desse treinamento foram os seguintes:

Desenvolver a capacidade de manter 100% de atenção na execução técnica do fundamento treinado e/ou do disparo.
Total abstração, durante a execução do processo, do resultado numérico do disparo.
Realizar um extraordinário exercício de disciplina mental em suportar o treinamento isolado e em seco.
Desenvolvimento da capacidade de criar realidades positivas, tanto na corrida quanto nas provas em seco.
O desenvolvimento de um ótimo relacionamento com meu “técnico interior”, fundamental no nosso esporte, conseguido pelas conversas com ele nas muitas vezes que parei o treino para me auto-analisar e me auto-motivar.
Entender que o tiro real não tem nenhuma importância no treinamento, muito pelo contrário, na maioria das vezes atrapalha.

Julgo que dois aspectos me ajudaram muito: o fato de habitualmente já treinar muito em seco, mesmo quando tinha como atirar com munição real, e a aspiração de querer muito ir ao Mundial.

Quando regressei ao Rio, a CBTA já havia fechado a equipe, e, por não ter participado dos outros TTSS, eu não estava convocado. Mesmo porque, depois de cinco meses viajando pelo mundo, sem treinar, como eu iria competir?

Para minha sorte, eu tinha feito o índice, e nem todos os convocados na Pistola Livre o tinham alcançado. Com base nesse fato, argumentei e tive como resposta o seguinte desafio: faria no próximo final de semana uma prova extra, sozinho, no estande do Flamengo (campo neutro para mim, que treinava no FFC), observado pela comissão técnica. Se eu repetisse o índice, iria ao Mundial.

Dei um treino com tiros reais no sábado e fiz a prova no domingo, terminando com 553 pontos, resultado que me levou ao Mundial. Em Seul, fiz 548 pontos e fiquei em 24º lugar.

Essa passagem me demonstrou o quanto o treino em seco é importante, e mais, o quanto é importante na vida termos a capacidade de criarmos nossas realidades de sucesso. No nosso esporte, essa habilidade representa muito mais do que o treino físico e técnico. A atitude confiante é construída com base no trabalho realizado, mas a sua manutenção nos momentos de stress competitivo é 100% psicológico.

Nesse mundial, o Brasil, na prova de Pistola de Ar, ficou em 2º lugar por equipe (Paulo Lamego, Benevenuto Tilli, Wilson Scheidemantel e Bertino de Souza) e Paulo Lamego, com 388 pontos (a prova na época era de 40 tiros), ficou com o bronze individual.

Terminamos bem o ano!

Silvio Aguiar
silvio.aguiar@gmail.com


2 comentários:

Unknown disse...

Parabéns pela disciplina e persistência.Realmente tem que ter um objetivo e muita vontade de querer atingi-lo.E isso você teve.A sua história é bastante motivadora para qualquer "futuro atleta".
Espero um dia poder contar uma história como a sua.Provavelmente não no navio..mas quem sabe num avião...rs.
Abraço,Ilka AG

Antonio Cristaldi disse...

Este relato, me lembro bem, foi feito resumidamente pelo Sílvio na abertura da turma de treinandos do Clube Magnum 44. Detalhe importante é a escolha do "fundo da embarcação", onde o "jogo" do navio é menor...

Abraço.
Antonio Carlos Cristaldi